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Barganha e confiança



Tem base bíblica a ideia de que Deus pode nos abençoar em troca de atos, decisões ou ofertas nossos?


Penso que não é exagerada a constatação de que essa pergunta vem dividindo a cristandade no Século XXI, pelo menos no Brasil.


É que na segunda metade do Século XX as igrejas neopentecostais ganharam força justamente com o discurso da famigerada teologia da prosperidade. Hoje, elas têm um posicionamento dominante no cenário evangélico nacional, e isso se deve em grande parte ao sucesso desse polêmico referencial doutrinário.


A origem histórica da teologia da prosperidade é debatida, mas sua popularização se deve, certamente, a alguns carismáticos televangelistas que pulularam nas TVs norte-americanas a partir da década de 1950. O principal deles foi Kenneth Hagin, pastor do Texas que fundou o movimento Palavra de Fé.


Esse movimento disseminou as sementes da teologia da prosperidade mundo afora. E não demorou muito para que chegasse ao Brasil: logo na década de 1970 já começavam a germinar as que ainda hoje se afiguram como as principais denominações vinculadas à teologia da prosperidade em solo brasileiro.


Dentre muitas práticas que a teologia da prosperidade endossa, a que nos interessa analisar neste texto diz respeito ao encorajamento à realização de barganhas com Deus.


Basicamente, funciona da seguinte forma: você oferta algo a Deus (geralmente dinheiro) e espera o retorno do investimento depois de algum tempo: mais dinheiro, curas, viagens, relacionamentos, e por aí vai.


Nós não acreditamos na teologia da prosperidade.


Pensamos que essas ideias buscam soçobrar a soberania de Deus, o que não se pode sustentar de maneira biblicamente aceitável.


Nossa fé entende que as ofertas alçadas e os dízimos pagos nada mais são do que uma manifestação de obediência às ordenanças do Senhor, e isso não se deve interpretar como um escambo. Se a igreja não é um cassino, a salva também não é o bocal de um caça-níquel.


Eis aí a radiografia do cisma que divide a cristandade entre os neopentecostais, de um lado, e as igrejas evangélicas mais tradicionais, de outro.


Posto que tenha claro o lado em que perfilo, não consigo esconder uma inquietação a respeito.


Se por um lado é certo que a teologia da prosperidade e o modelo de relação de escambo estão equivocados, por outro, entendo que também não podemos nos desviar de maneira drástica para a direção oposta.


Isto é, devemos tomar cuidado para não dirigirmos nossa vida sob o viés de que nossas posturas, boas ou más, não influenciam a ação de Deus.


Querer forçar a ação de Deus por meio do escambo é tão grave quanto abraçar a inércia sob a crença de que a soberania do Senhor torna a resposta a nossas orações um fato aleatório.


Como superar, então, essa aparente antinomia? Se Deus é soberano e, portanto, não podemos barganhar com ele, como nós podemos explicar o fato de que ele também não é alheio às nossas condutas?


Penso que a chave para responder a esse dilema se encontra no insigne texto do Salmo 37:4-5:


"Deleita-te também no Senhor, e te concederá os desejos do teu coração. Entrega o teu caminho ao Senhor; confia nele, e ele o fará."


O texto explicitamente faz proposições condicionais.


Se você se deleitar no Senhor, então ele concederá os desejos do teu coração. Se você entregar o teu caminho ao Senhor e confiar nele, então ele tudo fará.


Mas, se pensarmos bem, não parece justamente que esses versos propõem uma relação de troca, de escambo? Eu troco uma coisa (deleite, confiança), por outra (bênçãos, concessões de desejos)? Isso também não viola a soberania de Deus? Na prática, não é a mesma coisa?


Não. E aqui vem a grande sacada: não é a mesma coisa porque essa proposição condicional não opera no âmbito de uma relação de barganha, mas sim no âmbito de uma relação de confiança.


Gosto de introduzir a dicotomia barganha-confiança com duas imagens mentais.


Relação de barganha é aquilo que você tem com o seu feirante. Você vai, compra o seu peixe, deixa o seu dinheiro, e vai embora. Você pode (e deve) até ser simpático, cumprimentar o mercador com educação, perguntar sobre a família dele, mas o que você quer, mesmo é o peixe --e ele, o seu dinheiro.


Já a relação de confiança é como a que se desenvolve entre dois bons amigos. Só o tempo pode intensificar essa relação, e só as mais inusitadas experiências é que podem prová-la. Quando ela se fortalece, é dificilmente quebrável. Quando um busca favores no outro é atendido sem hesitações, e não raro os favores prestados são aqueles oferecidos, e não pedidos. Nessa relação não há dúvida nem ciúme, e tampouco desconfiança entre as intenções. Tudo o que existe é a sincera disposição em prestar um desinteressado apoio mútuo.


Tendo essas imagens em mente, perceba que quatro são as diferenças entre a relação de barganha e a relação de confiança.


Em primeiro lugar: perenidade. A relação de barganha é eventual, fortuita, episódica. É uma troca que se propõe, acontece, se consuma, e acabou. Cada um vai embora para o seu lado com aquilo que arrebatou do outro. Já a relação de confiança é perene. Ela não se esgota em uma ou outra interação. O intercâmbio de experiências entre pessoas que guardam entre si uma relação de confiança nelas não se exaure, mas ao invés, se fortifica.


Em segundo lugar: construção. A relação de barganha não precisa ser construída. Você não precisa fazer um processo seletivo para entrar numa feira, e nem que um amigo em comum o apresente para o vendedor de peixes. A relação de confiança, por outro lado, nunca brota do nada. Ela precisa ser construída. Precisa ser vivida em experiências e ser conduzida em sacrifícios, ofertas de tempo, disposição, proximidade.


Em terceiro, o motivo. O único motivo para a existência da relação de barganha é a barganha em si. E pouco importa, para um, qualquer outra coisa sobre o outro, contanto que ele entregue aquilo que está envolvido na permuta. Já na relação de confiança, as trocas são o de menos. Elas acontecem, e muitas vezes são desejadas e importantes, mas o que realmente vale é o laço que está por trás delas. A relação de confiança não é motivada pelo interesse nas trocas, mas pela lealdade bilateral envolvida na relação em si.


Por fim, a finalidade. O efeito projetado para a relação de barganha é pontual: eu quero o meu peixe, e você, o meu dinheiro. Já a representação do efeito na relação de confiança é absolutamente complexa. Duas pessoas em relação de confiança podem produzir, entre si, teias e mais teias de benefícios e comprometimentos mútuos. Todos visam gerar, no limite, um único efeito: o fortalecimento da própria relação.


A título de conclusão e diante de todo esse cenário, é importante que saibamos: Deus não procura fregueses para desenvolver uma relação de barganha, mas sim amigos, para uma relação de confiança --e somente nesse contexto é que ele pretende dispensar-lhe os seus favores.


Com que tipo de relação em mente você tem se aproximado do seu Senhor?


"Ora, sem fé é impossível agradar-lhe; porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe, e que é galardoador dos que o buscam", Hebreus 11:6.


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