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Perdão


Perdão - Devocional sobre Perdão


O que é perdoar?


Perdão é aquele tipo de ideia que todo mundo tem, em esboço, na cabeça, mas que quando somos instados a definir, temos dificuldade.


Andei refletindo por que um conceito tão importante como o do perdão costuma ser de difícil entendimento pleno pelas pessoas.


Uma das razões talvez seja prática: o perdão é uma categoria voltada à ação. Compreendê-lo mal, ou sob algum viés em particular, pode ser conveniente em situações reais, a fim de justificar (para os outros e para si próprio) certas decisões que se afigurem controversas.


Mas me parece que a razão determinante para que a ideia do perdão não seja conhecida com clareza é, essencialmente, lógica.


Explico. Perdoar não é, na linguagem vulgar, uma palavra unívoca. Isto é, usamos exatamente essa mesma palavra para expressar duas ideias diferentes, e fazemos isso sem perceber.


É que falamos indistintamente em perdão tanto para o caso daquele que erra e precisa pedi-lo, bem como para o caso daquele que é vítima e merece recebê-lo.


É comum ouvirmos chavões como "O perdão precisa te libertar!", ou "Não negue o perdão!" Pense, por exemplo, nesse último caso. A máxima se dirige a quem foi ofendido e precisa "liberar o perdão" ou a quem ofendeu, "recebeu a oferta" de perdão e não quer aceitá-lo por vaidade?


Frases assim são confusas, frequentes tanto no jargão popular como no evangélico, e geralmente partem da premissa do perdão como uma moeda de troca, objeto de algum laço ou contrato moral. Não penso que seja assim.


Outras dificuldades são: o que perdoamos é a infração ou o infrator? Ou antes: será que o perdão é uma ação externa, mesmo? Será que não é simplesmente um estado de espírito, algo interior?


Neste texto quero propor caminhos para tentarmos enxergar de maneira mais clara a ideia do perdão.


Vamos começar analisando o panorama geral no que diz respeito ao vocabulário usado para expressar a ideia.


À luz das Escrituras, a peleja sobre a metafísica do perdão já começa com as traduções do texto original bíblico.


Por incrível que pareça, não existe um cognato perfeito para "perdão" e "perdoar" nas línguas originais.


No hebraico, a principal palavra traduzida por perdão é salah. Mas veja a observação arguta que o Dicionário Vine traz a respeito desse termo: "O significado 'perdoar' [da palavra salah] é limitado ao hebraico bíblico e rabínico; no acadiano, a palavra quer dizer 'borrifar' e no aramaico e siríaco significa 'despejar'. O significado de salah no ugarítico é discutível" (Rio de Janeiro, CPAD, 2002, p. 224).


Ainda há o fato de que essa palavra só aparece com referência a Deus --e a ideia que estamos explorando aqui é pluripessoal, não está limitada ao perdão oferecido por Deus.


Há pelo menos mais outras três palavras que são traduzidas, em passagens diversas do Antigo Testamento, por perdão ou algum cognato seu: nasa, awon e kapar. Todas sem correspondência perfeita.


No grego a dificuldade não é diferente. Aphiemi, geralmente apontada como a principal palavra grega para perdoar, aparece 147 vezes no Novo Testamento; no entanto, nem sempre é traduzida assim. Obedecendo sua origem etimológica, às vezes aparece como libertar ou deixar, e em contextos que não estão relacionados com aquilo que geralmente entendemos por perdão.


Perdoar também às vezes é tradução de charizomai, verbo de voz média relacionado com a raiz charisma, isto é, graça. Então uma tradução literal mais perfeita seria "exercer graça para com alguém", vago demais para um conceito aparentemente mais estrito como o de perdão.


Há outras palavras que também são aplicadas no contexto do perdão, mas sempre sem correspondência perfeita.


Bem, se não se pode confiar muito nas instâncias de "perdão"/"perdoar" que aparecem no texto traduzido para emoldurar o seu respectivo conceito, como solucionar o mistério? Como definimos, biblicamente, no fim das contas, o perdão?

Casos assim não são raros para os intérpretes da Bíblia, e nessas circunstâncias precisamos nos valer de uma abordagem inteligente que leve em conta o texto bíblico como um todo.


Quando me peguei refletindo sobre o assunto, e tão perdido como nunca ao mergulhar na desconstrução da ideia do perdão, a primeira pista apareceu em um texto incomum, até estranho a uma primeira leitura, que está em Lucas 6:37: "Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; soltai, e soltar-vos-ão."


A parte em destaque, porquanto inusitada, foi a que me chamou a atenção. A escolha literal da tradução ARC não parece fazer muito sentido. Mas quando vamos para a ARA, o tradutor opta pelas seguintes palavras: "Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados."


Investigar a razão do dissídio foi o primeiro passo na construção da reflexão que segue.


O grego usa a palavra incomum apoluo, que é um termo, essencialmente, judicial: soltar, libertar, fazer alguém livre. A escolha faz sentido dentro da gradação da frase de Jesus: julgar/condenar/e... soltar, libertar. Faz sentido, mesmo.


Ocorre que o contexto maior dispõe claramente sobre atos de graça e misericórdia. Não estamos falando de uma situação judicial, denotativamente. Jesus está, na verdade, usando mais uma de suas alegorias materiais para ensinar algo espiritual. Donde a escolha do tradutor da ARA por "perdoar" --o que faz sentido, também.


A conjugação de um ato que envolve manifestação exterior --porque esse é o efeito do perdão no contexto judicial-- mas também manifestação interior --porque a graça e a misericórdia são virtudes internas de quem as pratica-- me fez pensar que aquilo que chamamos de perdão, na verdade, subdivide-se em duas partes.


De um lado, o perdão está relacionado ao arrependimento de quem comete a falta. Arrependimento é a consciência do infrator de que o que fez foi errado somada com a vontade sincera de que não o tivesse feito, isto é, um desejo de voltar atrás. Essa é a parte interna do perdão.


Mas de outro lado, o perdão está relacionado também com o reconhecimento daquele que sofreu a falta de que o infrator está verdadeiramente arrependido. Essa é a parte externa do perdão.


A pessoa que erra e pede o perdão está, na verdade, querendo que a vítima reconheça (parte externa) o seu arrependimento (parte interna). A pessoa que perdoa está reconhecendo (parte externa) que a pessoa que pede o perdão está verdadeiramente arrependida (parte interna).


Difícil? Hum, melhor desenhar...





Partindo desse modelo, conjugado com o texto bíblico, extraímos dois ensinamentos valiosos.


Em primeiro lugar: o modelo da relação de perdão vem da própria relação do homem com Deus.


A História da queda e da redenção, globalmente considerada, é uma História de perdão. O homem pecou e precisa se arrepender, estar consciente de sua falta e desejar uma restauração. A esse estado de conversão interna, o Senhor oferece gratuitamente o seu reconhecimento e, com ele, toda a absolvição.


O perdão que um homem pode oferecer a outro nada mais é que uma projeção da relação-modelo que o próprio Deus criou.


Assim, a chave hermenêutica para decifrarmos o perdão homem-homem é a compreensão do perdão Deus-homem. Qualquer visão daquele que não leve em conta este está fora de rumo e, mais cedo ou mais tarde, vai levar a formulações distorcidas sobre a relação de perdão.


Em segundo lugar: o perdão não é um fluido, uma coisa que se dá ou tira. O perdão é essencialmente um ato interno com efeitos externos. Faça a sua parte e você terá o seu perdão independentemente do resto.


É errado que a pessoa a ser perdoada e o perdoador pensem no perdão que podem oferecer como uma cártula, um objeto que se pode dar ou sonegar.


Do ponto de vista Bíblico, o perdão depende apenas de cada uma das partes nele envolvidas: quem errou deve se arrepender e quem foi vítima deve reconhecer o arrependimento de quem errou.


Assim, se quem errou se arrependeu e buscou esse reconhecimento, não há mais nada que ele precise fazer para se ter por perdoado. Esse é o modelo que vem de Deus: o reconhecimento do nosso arrependimento é algo que o Senhor nos oferece de antemão. Não há a possibilidade de o Senhor negar reconhecimento ao nosso arrependimento sincero (Salmo 51:17).


Quer dizer, se a pessoa atingida negar o perdão, isso não tem efeito prático e o infrator sinceramente arrependido não deve se ter por preso, sequestrado a essa resistência. Como já explicamos: o perdão tem duas partes e a parte que lhe cabia foi devidamente cumprida. Isso é o que importa.


De outro lado, se aquele que foi vítima está disposto a reconhecer o arrependimento do outro, mas este se recusa a se arrepender, também não há consequência prática no desarranjo.


É erro comum que a pessoa ferida endureça o coração e se arvore na condição de árbitro da contrição alheia. Esse sentimento é maligno e não prospera nos lugares espirituais. A disposição de reconhecimento ao arrependimento alheio deve ser exatamente como a do Senhor: prévia, plena e livre de rancor. O amor, regente de toda relação interpessoal divinamente validada, "não suspeita mal" (ACF), ou melhor, "não guarda rancor" (NVI) --1 Coríntios 13:5.


Em conclusão: perdoar é uma ideia complexa que se divide em arrependimento e reconhecimento. O primeiro é dever do que atinge. O segundo é dever do atingido. E tudo isso tem como modelo a relação salvífica protagonizada pelo próprio Deus.

O infrator que não se arrepende da sua falta não esqueça que será alvo do riso do Senhor na sua perdição (Provérbios 1:26). Mas a vítima que não reconhece o arrependimento do infrator não esqueça que o perdão que ela recebe de Deus é proporcional ao que ela dispensa ao seu próximo (Mateus 6:12).


Mas o infrator que se arrepende e a vítima que reconhece também não esqueçam que o Senhor ouve dos céus a voz do coração contrito (2 Crônicas 7:14) e faz o misericordioso ser bem-aventurado e achar, nEle, misericórdia (Mateus 5:7).









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