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Compaixão divina em nós


Este é o último texto da série sobre compaixão. Se você nos acompanhou ao longo das últimas semanas, juntos pudemos entender como a compaixão, um reflexo dos atributos divinos, transformou-se em verdadeiro sentimento por meio de Jesus Cristo.


Ao clarificar à mente humana este complexo e belo “instinto” de Deus, Jesus abriu o caminho para que nós também pudéssemos desenvolvê-lo como um dos aspectos de nossa nova vida. Assim, à medida que andamos pelo Espírito e deixamos germinar seu fruto em nós (v. Gálatas 5:18-26), tornamo-nos naturalmente compassivos, como produto do amor ágape e do caráter aprovado postos em prática.


Mas, a grande verdade é que nossa experiência após a salvação é um gradual processo de transformação espiritual, pelo qual somos levados à semelhança de Jesus, ao mesmo tempo em que precisamos negar nossas próprias vontades. Daí que, durante esse processo (chamado de santificação), passamos por diversos conflitos interiores quanto à nossa maneira de viver, pensar e sentir[1].


Justamente por isso, o sentimento de compaixão divina mistura-se a tantos outros sentimentos humanos que trazemos conosco desde os mais remotos anos da infância. Nosso complexo coração é de impossível racionalização. Porém, em que pese seja inviável construí-lo pela razão, a Bíblia nos revela que sentimentos podem ser moldados pelo Espírito, desde que nos entreguemos por completo à metanoia proposta por Paulo em Romanos 12:2.


É uma dinâmica misteriosa que acontece em nosso interior. A presença do Espírito Santo nos mostra a cada dia a imagem de Cristo, produzindo uma revolução contínua em nosso caráter, pensamentos e sentimentos. Deixar que Deus transforme tudo isso significa permitir que Ele recorte todas as bordas excedentes que sejam perigosamente humanas. Assim, Deus constrói a verdadeira compaixão em nós separando-a de outros sentimentos que nos causem confusão.


Alguns desses sentimentos humanos perigosos devem ser esclarecidos para que não sejam confundidos com a compaixão. O primeiro deles é a dó.


Definiria dó como o alívio da alma humana em face da dor alheia. Se esta definição lhe pareceu inadequada, permita-me explicá-la.


Você e eu provavelmente já dissemos “que dó...” depois de ouvirmos uma história triste. Ou, ainda, quando estamos parados no farol (semáforo) vermelho e um mendigo nos pede esmola, é bem comum o comentário: “tenho dó de pessoas nessa situação”.


O primeiro aspecto que esses exemplos nos evidenciam é que o sentimento de dó sempre nasce de uma posição de superioridade. O sujeito que o experimenta necessariamente não está vivendo a mesma dor do sujeito passivo da dó. Isso é ressaltado à medida que aquele toma consciência de que há diversas pessoas no mundo que passam por situações piores do que as que ele enfrenta.


Só que tal constatação não lhe produz dor. Diferentemente da compaixão, a dó se constrói com um quê de alívio por não precisar passar por certos sofrimentos aos quais outras pessoas se sujeitam. Na dó, a realidade é dura de ser enfrentada, mas “seria ainda mais dura se fosse comigo”. Por isso, podemos dizer que seu conteúdo não é a tristeza, como no caso da compaixão, mas uma disfarçada alegria.


Então, quem tem dó tem alegria? Essa afirmação é radical, mas não deixa de ser verdadeira. Este sentimento revela aspectos muito claros do egoísmo humano: i) a sobrevivência do mais forte; ii) a busca por zonas de conforto; iii) a total despreocupação para com o próximo.


A dó era o sentimento dos possíveis espectadores da cena de uma mulher adúltera sendo levada até Jesus: “coitada, será apedrejada”. Eram superiores, pois não haviam cometido adultério; aliviados, pois não receberiam a punição... Provavelmente, se tivessem a oportunidade, jogariam uma pedra, apesar da dó. Por outro lado, compaixão foi o sentimento de Jesus: viu o interior da moribunda e fez algo a respeito de sua dor. Incrível foi a resposta dada pelo Mestre: “atire a pedra aquele que nunca pecou”. Afinal, quem nunca pecara? De repente, a superioridade da dó dá lugar a inferiorização da compaixão. Todos são colocados em um mesmo plano e saem, um a um, carregando na consciência um leve apreço pelo próximo. Jesus finaliza: “eu não te condeno. Vá e não peques mais”. Nas entrelinhas: “não te condeno, pois serei condenado em seu lugar” – a dor da pecadora será a dor de Jesus e isso lhe permitirá viver uma vida sem pecados. No embate entre dó e compaixão, venceu a compaixão divina.


Desta alegoria baseada na passagem da mulher adúltera depreende-se que a compaixão produz um necessário “rebaixamento de status”. Por isso Paulo nos orienta para que nossa atitude seja a mesma de Cristo Jesus (Filipenses 2:5-8). Somente por meio desse mecanismo é possível verdadeiramente colocar-se na posição sofredora do próximo. Obviamente que esse partilhar na dor alheia não significa ir morar na rua com o mendigo, ou adulterar como a mulher adúltera. Essa partilha é um mistério que minha mente não consegue compreender, pelo qual o Espírito Santo permite que nosso coração interprete o coração do próximo.


O segundo sentimento humano que necessita de ser esclarecido para que não se confunda com a compaixão é o afeto. Defino-o como o apreço por alguém com quem se compartilha de algo em comum.


Nesse caso, a distinção é bem mais difícil. Não porque compaixão e afeto se confundam, mas porque na maioria das vezes andam lado a lado. Vejamos.


Nós compartilhamos algo em comum com familiares, parentes, amigos e com todas as pessoas das quais dizemos que gostamos[2]. O sofrimento desses sujeitos provoca em nós um sofrimento reflexo.


Este ponto exige bastante precisão. O afeto que temos por determinadas pessoas faz com que sintamos uma dor pessoal em vê-las sofrer. Já a compaixão, traz para dentro de nós a dor daquele que sofre. Assim, compaixão e afeto produzem sofrimentos diferentes. No caso da compaixão, é como se eu invadisse o coração alheio, tomasse sua dor e a instalasse em mim. Em se tratando de afeto, estou fechado em meu coração, o qual dói sozinho, por causa da importância daquele que sofre para a minha vida.


Obviamente que, se gostamos verdadeiramente de uma pessoa, estamos dispostos a sentir a dor dela e fazer de tudo para que essa dor seja dissipada; ao mesmo tempo que sentimos uma dor nossa, seja pelo medo de perdê-la, pela mudança que o sofrimento provoca no contexto do relacionamento ou outros fatores. Daí se dizer que afeto e compaixão caminham de mãos dadas.


Até Jesus demonstrou essa confluência de sentimentos! Depois de alguns dias da morte de seu amigo Lázaro, Jesus foi até Betânia. Após encontrar com as irmãs do morto, João nos relata que Jesus chorou (João 11:35). Alguns versículos em seguida, João afirma que Jesus ficou profundamente comovido ao chegar ao sepulcro (João 11:38). Naquela ocasião, o Verbo traduzia um sofrimento particular, atestando para todos que sua totalidade humana também produzia afeto por outras pessoas. Mas, na mesma ocasião, a compaixão divina em Jesus levou-o igualmente à dor da morte e trouxe Lázaro de volta à vida.


Entendo ser praticamente impossível se falar em afeto sem que haja compaixão. Porém, isso não significa que não possam (e devam) ser distinguidos. Aliás, a essência da compaixão existe justamente quando não houver qualquer afeto envolvido. Isso deflui da própria compaixão divina.


Deus não sente afeto por pessoas; Ele as ama. Como observamos, o afeto pressupõe critérios preferenciais entre seres humanos, mas Deus amou o mundo; leia-se “todas as pessoas do mundo” (João 3:16). E, assim o fez quando ainda éramos inimigos (Romanos 5:10). Então, uma das características primordiais da compaixão é que nela não se “olha a cara”; olha-se sofrimento, e este não tem rosto.


Ao finalizar esta série, concluímos que a compaixão é uma figura imaterial que traduz um aspecto em comum entre todos nós, seres humanos, qual seja: todos sofremos. Por isso, a compaixão nos une em nossas dores e nos faz lembrar que há uma Esperança além do tempo presente.


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[1] Paulo reflete bem um desses conflitos em Romanos 7:14-25.

[2] Gostar é diferente de amar, mas isso já é assunto para outra série.



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